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Voo

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– É sempre a abrir! Estás com grande moca! – Os turistas que passavam àquela hora pela estação de Belém contemplavam boquiabertos aquele espetáculo. Ainda com restos de pastel de nata presos nos dentes, pediam em voz baixa às crianças que estas lhes dessem as mãos, com algum receio daquilo que pudesse acontecer nos instantes seguintes.

Faltavam cerca de três minutos para a hora prevista de chegada do comboio que seguia na direção de Cascais. Um silêncio ensurdecedor, que contrastava com aquela exclamação curiosa, percorria cada milímetro da linha férrea e desgastava ainda mais os contornos e pormenores do castanho sujo que a pintava. Uma ou outra mosca por ali passeavam, desnorteadas pela ausência de um sítio para onde ir, e alheadas da vida humana que parecia querer existir ao seu redor.

– É sempre a abrir! Estás com grande moca! – As moscas aos poucos lá decidiram que não havia grande interesse em ali estarem, e fizeram-se acompanhar pelo silêncio no caminho até ao Tejo. O comboio tinha chegado e com ele tinham partido os camones e mais uns restos daquele castanho sujo dos carris, que berrava por atenção. A estação era agora um vazio de cores e de movimento, e aquelas palavras, proferidas com cada vez mais certezas, não queriam ir a lado nenhum.

Era a terceira vez naquela semana que Pessoa via as suas amigas moscas voarem sem ele em busca de novas aventuras. Tinha a noção de que conseguia voar, pois não era nenhum inválido, e considerava uma tremenda falta de respeito por parte das suas companheiras estas nunca o convidarem para aqueles voos. Aborrecido com a situação, lá decidiu fumar outro charro e beber mais uns goles do vinho tinto de pacote que tinha comprado, para ver se se esquecia daquela absurdez.

A vida era espetacular do outro lado. Não havia medos nem perigos, a doença era coisa rara e Pessoa não conhecia ninguém que alguma vez tivesse morrido. Sentia-se livre como nunca naquele seu pequeno paraíso. As pessoas não o julgavam e até lhe perguntavam como é que permanecia tão bem conservado apesar da idade avançada. Esboçava sempre um sorriso tímido, sem saber ao certo o que havia de lhes responder.

Outro dos aspetos daquele mundo florescente que mais o fascinavam era o facto de não haver horas, nem minutos, nem segundos. Todos se guiavam pelo seu instinto, e até então funcionava às mil maravilhas. O único que contestava era o senhor Simão, um pobre coitado que vendia relógios na sua ourivesaria – ou que pelo menos os tentava vender –, mas sem qualquer sucesso.

– Ó senhor Simão, está farto de saber que ninguém lhe vai comprar os seus relógios! – gritava a dona Susete, uma mulher de traços feios, – com um cabelo escuro como petróleo –, e que, para além de gerir a mercearia da vila, era também detentora de um sentido de humor muito apurado.

– Ó Susete, e a ti ninguém te pega, tendo tu esse cabelo e essa cara de quem nunca viu a luz do sol! – respondia da sua loja o senhor Simão, irritado com aquela mulher, que todos os dias lhe dizia o mesmo.

Pessoa delirava com aquele cenário. Por um lado, sentia alguma pena do senhor Simão, que ficava sempre com as bochechas transformadas em autênticos tomates, tal era a ira que o invadia; por outro, adorava a leviandade com que a dona Susete encarava aquelas discussões, sem qualquer receio daquilo que os outros pudessem pensar dela.

– É sempre a abrir! Estás com grande moca! – Pessoa não conhecia a personagem que avistava ao fundo da rua, mas a dona Susete lá se encarregou de lhe explicar que se tratava do filho do sapateiro. Era um jovem não muito alto, com uns olhos mais azuis que o azul das profundezas do oceano, e que, para grande desgosto do pai, tinha como maiores vícios a droga e o álcool. Andava aos tropeções de um lado ao outro, repetindo vezes sem conta aquelas palavras, e rindo-se sempre que se cruzava com o seu reflexo nas vitrinas dos estabelecimentos da vila.

– Filho, vai para casa porque o teu pai deve estar preocupado contigo. – Mas o rapaz não se apercebia dos olhares vigilantes que se concentravam à sua volta. Agora que se encontrava em plena praça central, toda a sua atenção ia para umas borboletas que esvoaçavam alegremente por entre as flores do canteiro do adro da igreja. A sua expressão facial era a de um menino a quem não tinham crescido asas, mas que ficava encantado com o voo das borboletas.

O vinho tinha acabado e o charro estava já apagado. Pessoa tinha-se deitado num dos bancos da estação de Belém, onde habitualmente passava a noite. Sentia saudades da vida do outro lado. Não sabia o que era feito da dona Susete, nem do senhor Simão, nem dos outros habitantes da vila. Desde que viera para a capital que tinha perdido o contacto com todos eles. Agora os seus únicos amigos eram as moscas.

– É sempre a abrir! Estás com grande moca! – Pessoa sorria, ao ver o seu reflexo nas janelas do comboio que passava. Estava velho, nada bem conservado para a idade, e os seus olhos, que em tempos tinham sido de um azul cristalino profundo, estavam raiados de vermelho. Perguntava a si mesmo por onde andaria o filho do sapateiro.

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