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Ressaca

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Não foi boa ideia ter deixado isto para a última. Desculpa, vício, cerveja, livro. Amigos, qual delas é que escolho? Na minha cabeça são todas iguais. A cerveja é o meu vício e também um “desculpa, pai, por trabalhar regularmente para, um dia, tal como tu, poder exibir uma imponente barriga — anatomicamente conhecida como abdómen — na praia”. Acabei de chamar gordo ao meu pai de forma querida.

Falei de pais, falei de barrigas e falei de abdómens. Até de praias falei, quando ultimamente só chove torrencialmente. Só não falei do livro, e era suposto. Tenho um livro com uma compilação de 1001 cervejas, que aconselho. O livro ou as 1001 cervejas? É o problema das adjetivas relativas explicativas. Eu escolheria a segunda e comprava um bilhete de avião para a Bélgica, daqueles baratinhos que a NiT tanto gosta de publicitar.

“Atenção, senhores passageiros. Acabámos de aterrar no aeroporto de Bruxelas. A temperatura exterior é de 2ºC. Desejamos a todos uma boa estadia. Obrigado por voarem com a Ryanair.”. Apanhei a promoção em boa hora. Eu e o Francisco, o meu melhor amigo desde os cinco anos, há muito que planeávamos esta beer trip. Lá arranjámos uma data em que podíamos os dois e fomos.

Foi uma viagem e peras. Mas porquê peras? Porque não maçãs? Ou kiwis? Muito pouca gente sabe, mas o verdadeiro nome do kiwi é Actinidia deliciosa. Achei que era de extrema importância deixar esta pequena informação. Andamos a ser enganados pelos doutores que dão nomes às coisas. E andamos a ser enganados pelos kiwis, que estão longe de ser deliciosos. Actinidias deliciosas, quero eu dizer. Peço desculpa.

“Desculpa”, agora que penso com todo o meu cérebro acéfalo, teria sido uma excelente escolha de palavra. “As desculpas não se pedem, evitam-se”, disse a Clarinha, com os seus oito anos. Eu cá evito ao máximo pedir desculpas. É chato ter de fazer um mea culpa quando, no fundo, nem sabemos o que fizemos de mal. Como também não sei muito bem o que estou para aqui a fazer, um muitíssimo obrigado a todos.

Quantas vezes já se viram obrigados a dizer um “obrigado”? É estranho que uma palavra que tem como função neste mundo transmitir gratidão seja também usada para descrever o estado inerente a qualquer aluno de 12º ano, na hora de ler o Memorial do Convento. A leitura obrigatória devia ser proibida, o que acaba por ser um contrassenso. E para contrassensos já chega este texto. Não precisam de agradecer.

O dia de ontem por vezes torna-se mais complicado do que o dia de amanhã. Mesmo que hoje seja domingo e que amanhã seja o pior dia da semana, segundo um gato cor de laranja que gosta de lasanha. Quem me dera que o meu jantar de ontem tivesse sido lasanha. Era sinal de que tinha ficado em casa, a ver uma boa série e a apreciar esta iguaria pré-confecionada. Mas não. Foi grelhada mista. Já vão ver aonde é que isto vai chegar.

Ontem fui jantar com os meus amigos de Santarém. Todos os anos, por esta altura, organizamos um jantar para matar saudades. Para dizer obrigados e desculpas. Para falarmos de livros que lemos e de viagens que fizemos ou que tencionamos fazer. No fundo, para discutirmos sobre um bocadinho de tudo, sem que esse tudo impossibilite a realização deste jantar no ano seguinte.

Mas o ontem é também sinónimo de vício. São jarros e jarros de cerveja até que 1001 pareça apenas um pequeno número que faz capa de um manual de entreajuda. Sentimo-nos verdadeiros heróis, de copo na mão. Temos uma noite pela frente que alcança um amanhã que não calculamos: «ressaca» — estado de decadência que altera a relação qualidade-preço de garrafões de água, que dá nome a trilogias e que faz com que as palavras “nunca mais bebo” deixem de ser estapafúrdias de todo (in Dicionário da Vida).

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