Néctar de reis
“Antónia agacha-se na rua e o chão vai-se enchendo com o som da urina acastanhada. O sol cai a pique e todas as janelas de todas as casas estão fechadas para dentro, deixando a aldeia sem ninguém, os largos vazios como fotografias velhas.” (pág. 13). O início de uma obra é como que uma fonte de néctar que vem adocicar as papilas gustativas do leitor, enviando uma mensagem ao cérebro de acordo com a voluptuosidade da escrita, a planta nectarífera que alimenta todo o processo de leitura. A extraordinária colocação das palavras, a maneira misteriosa como as deixa em suspenso e a audácia com que as escreve fazem de Afonso Cruz — escritor, ilustrador, cineasta, músico, “homem dos sete ofícios” — um “polinizador” nato, capaz de ligar o princípio e o fim de Jesus Cristo bebia cerveja de uma forma imaculada. É com este romance que Cruz vê o seu nome sob as luzes da ribalta, tendo sido apelidado por Mia Couto como “uma das vozes mais criativas da nova literatura em língua portuguesa”.
Em Jesus Cristo bebia cerveja — o melhor romance do ano 2014 para a revista Time Out —, Afonso Cruz conta-nos a história de Rosa, uma jovem alentejana com buço e com a estranha mania de chupar pedras como se fossem rebuçados. Não sabendo qual o paradeiro da mãe, e com a morte do pai e do avô, a rapariga vê-se desde cedo obrigada a enfrentar sozinha as dificuldades da vida e a tomar conta da sua avó. Antónia, de seu nome, é uma pobre senhora muito debilitada fisicamente, que passa grande parte do seu tempo a dormir e cujo o maior sonho é ir à Terra Santa, Jerusalém. E é à volta desse sonho que residem os inúmeros esforços do professor Borja, um homem apaixonado pela ciência e ainda mais apaixonado por Rosa.
Poder-se-á dizer que o lote de personagens apresentado pelo escritor é extremamente rico e de uma profundidade literária como não há igual. Para além das já mencionadas Rosa, Antónia e professor Borja — os grandes protagonistas da trama — temos outras figuras que desempenham, também elas, um papel fundamental no desenrolar da narrativa: Miss Whittermore, uma milionária inglesa que dorme dentro de um cachalote caçado por um antepassado seu; o pastor Ari, o único amigo de Rosa e que esta conhece desde os tempos da escola primária; o Padre Teves, um homem atormentado pelos maus tratos que sofreu por parte do pai, na sua adolescência.
Cruz, ao longo da obra, vai saindo da pele de um mero escritor e vai incutindo o seu lado mais humano. É visível, página após página, o conhecimento que este tem da vida campestre e do mundo que o rodeia — “Muito simples, vou explicar-vos, queridos apóstolos e Nosso Senhor: foi a cerveja. Para ter a cerveja era preciso cultivar. E assim nasceu a sociedade como a conhecemos. Graças à cerveja, temos hospitais e bibliotecas. Não existiriam escritores nem livros se não fosse a cerveja. Não existiriam escritores nem ciência.” (pág. 310). Os capítulos — bastante curtos — podem equiparar-se a pequenos goles de cerveja, através dos quais o mestre cervejeiro que vive dentro de Afonso Cruz tem a capacidade de ir tirando aos poucos a sobriedade ao leitor. Com momentos verdadeiramente hilariantes, carregados de ironia e de humor negro, as personagens vão ganhando cor e vida — “(…) Rosa disse ao padre que a sua mãe não era a sua mãe, mas sim a Virgem, que a tinha substituído. O padre, horrorizado, admoestou-a e chegou a puxar-lhe as saias e a dar-lhe umas palmadas no rabo. Castigo esse que o clérigo apreciou e passou a prodigalizar com alguma frequência.” (pág. 27).
O apogeu da história é, sem sombra de dúvidas, o seu final. Apesar da impossibilidade que Cruz imprime neste, é de realçar a coragem do escritor ao mostrar a vida como ela é e como sempre será, uma vida na qual não existem contos de fadas — “É certo e sabido que o final feliz é uma invenção humana. A vida nunca acaba bem.” (pág.358). Rosa é, também ela, um exemplo de imperfeição — a enantiose daquelas que são consideradas as caraterísticas da mulher desejada — transformada por Afonso Cruz na realidade aceite aos olhos dos comuns mortais.
Jesus Cristo bebia cerveja, apesar do recheio de qualidade inegável que nos proporciona a nível descritivo e de escrita, é um “bolo” cujo o topping — o enquadramento cronológico da obra — deixa algo a desejar. No entanto, são as falhas que tornam os grandes ainda maiores; falhar faz parte da condição humana. Que Afonso Cruz nunca se canse de falhar, e que nunca lhe falhe a tinta da caneta. Pois a polinização não acaba aqui. Que o resultado seja sempre doce, como um “néctar de reis”.
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