Melómano
Voltara a fechar os olhos. Ultimamente, parecia impossível não adormecer no sofá quando chegava a casa do trabalho. Tudo corria mal na redação do jornal, tinha inúmeras contas para pagar e nesse fim-de-semana ia a casa dos pais para o aniversário da mãe.
Há já bastante tempo que a sua relação com a família não era a melhor. O seu segundo divórcio não tinha caído bem a ninguém, e a ausência num momento tão importante como o nascimento do terceiro sobrinho também não ajudava em nada.
Nunca amara a sua primeira mulher. Foram demasiados anos de cumplicidade, desprovida de interesses em comum, e refugiada no prazer carnal e na facilidade com que a vida os cruzara. Já o segundo casamento, com uma amiga de longa data, não resultara pela sua incapacidade de conciliar o problema grave de saúde desta com uma necessidade constante de se afirmar no mundo do jornalismo.
A escrita acompanhava-o desde uma tenra idade. Não percebia ao certo como é que a junção de letras e palavras tinha aparecido na sua vida, mas sempre sonhara com um livro escrito por si. O simples facto de ter a oportunidade de dar a conhecer uma história a alguém deixava-o fascinado.
Aquele sofá não era de todo o mais confortável. Trazia-lhe recordações da sua infância, quando via os pais, também eles, a chegarem do trabalho e a adormecerem na sala, até acordarem estremunhados e seguirem na direção do quarto.
Voltara a fechar os olhos. Finalmente conseguia fugir ao pensamento rotineiro que o atormentava e que o fazia implorar por que aquelas horas de sono no sofá não acabassem.
“Fecha os olhos e vais ver que a música soa diferente”. Dissera tanta vez aquela frase a amigos em concertos a que foi assistindo ao longo da vida e só agora compreendia o significado da mesma.
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